"Há muito tempo que não leio nada dela", pensei eu. Poderia ter trazido de casa dos meus pais, qualquer um daqueles que a minha mãe comprou em tempos, não fosse terem sido arrumados em parte incerta. Decidi trazer um da biblioteca. Fui lá no dia 27 e, entretanto, já o terminei.
As minhas expetativas eram nulas. Não conhecia rigorosamente nada do enredo. Sabia apenas que foi dos primeiros romances da autora. E gostei imenso. Atravessamos cerca de 65 anos da história da família del Valle e Trueba, num país não nomeado da América Latina. Não é preciso sermos génios para perceber que se trata do Chile, como é óbvio.
Os del Valle, uma família endinheirada, têm 10 filhos, sendo que a mais nova, Clara, tem o dom da clarividência. Esteban Trueba é um jovem ambicioso e trabalhador que sonha casar com Rosa, uma das filhas dos del Valle, apesar da sua condição mais humilde.
Entretanto, Rosa morre, e Esteban, apesar da dor da perda da noiva, acaba por casar, alguns anos depois com a jovem Clara. Desse casamento nascem Blanca e os gémeos Jaime e Nicolau.
Vemos Esteban prosperar economicamente, e a ascender politicamente dentro do Partido Conservador.
Isabel Allende é, especialmente, descritiva nos movimentos políticos emergentes na época e da tentativa de instaurar um governo socialista no país. A figura do Presidente é referida muitas vezes, até ao golpe de estado militar. É fácil para nós assumirmos que o Presidente (sem nome) é o retrato de Salvador Allende e que o novo governante é uma figura militar ditatorial (Pinochet).
O casamento e a relação de Esteban e Clara é marcada por altos e baixos - mais baixos do que altos - muito devido ao mau génio de Esteban, um homem ultra-conservador e dado a ataques de fúria. A personalidade de Clara é o oposto da do marido. De espírito livre, Clara consegue prever acontecimentos do futuro e passa toda a sua vida a registar cada momento familiar no que ela chama "cadernos de anotar a vida" que, no fim, iriam servir para que a neta, Alba, pudesse escrever, cronologicamente, a história da família.
Clara, Blanca e Alba são as três grandes protagonistas desta obra. Todas elas completamente diferentes entre si, mas todas com uma garra tremendas, apesar de privilegiadas.
Esta minha análise é muito superficial. A história não é assim tão linear. O livro é escrito através de dois pontos de vista diferentes: o de Alba, de acordo com o que viveu e escreveu baseado nos cadernos da avó, intercalado com a visão de Esteban que aparece em discurso direto em vários momentos da narrativa.
E temos aqueles momentos quase mágicos de Clara, com as suas "esquisitices", excentricidades como lhe chamam... a mulher que consegue tocar piano com a tampa do teclado fechada, a mulher que consegue prever mortes e tremores de terra, a mulher que consegue mexer objetos com a mente... é de um realismo tão fantástico que, quase somos levados a crer, que efetivamente as coisas possam ter sido assim.
É um livro que recomendo vivamente. É um romance que fala de amor, perseverança, valores morais, valores familiares, vingança, destino, magia, política e vida.
Citação escolhida:
Escrevo, ela escreveu, que a memória é frágil e o trânsito de uma vida é muito breve e sucede tudo tão depressa que não conseguimos ver a relação entre os acontecimentos, não podemos medir a consequência dos actos, acreditamos na ficção do tempo, no presente, no passado e no futuro, mas também pode ser que tudo aconteça simultaneamente, como diziam as irmãs Mora, que eram capazes de ver no espaço os espíritos de todas as épocas. Por isso, a minha avó Clara escrevia nos seus cadernos para ver as coisas na sua dimensão real e para enganar a má memória.
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